perguntas para o pediatra Daniel Becker: "Seu filho
deve aprender que não é o centro do mundo"
Fabiana Santos
O pediatra Daniel Becker é o criador da Pediatria Integral:
um conceito de que a criança precisa ser vista de forma mais abrangente. Não é
apenas tratar e prevenir doenças, mas cuidar do bem estar emocional, social e
até espiritual da criança e da família. São 20 anos de experiência de
consultório no Rio de Janeiro. Formado pela UFRJ, ele é especialista em
Homeopatia e mestre em Saúde Pública. Médico do Instituto de Pediatria da UFRJ,
ele foi pediatra da Médicos sem Fronteira em campos de refugiados na Ásia e
fundador de uma ONG, o CEDAPS, Centro de Promoção da Saúde, com atuação em
comunidades carentes.
Becker é um apaixonado pela profissão e conta que ao olhar
sua trajetória se diz satisfeito pelas escolhas que fez. Ele é separado, pai de
dois filhos, um menino de 17 anos, roqueiro, e uma menina de 20 anos,
psicóloga. “Eles são muito bacanas. Tenho muito orgulho deles”, diz o médico.
Com tantos compromissos, entre palestras e consultas, ele abriu gentilmente um
espaço na agenda para responder às minhas perguntas.
1.Na sua palestra no Ted, você diz que um dos pecados
contra a infância é a "entronização". O que isso significa? Estamos
colocando nossas crianças em um trono?
A gente vive em tempos de hipervalorização da infância
tanto pela mídia quanto pretensamente pela família e pela sociedade. Mas na
verdade a infância é desvalorizada naquilo que ela tem de real, na sua
essência. Um dos fatores que explica esse paradoxo é a falta de intimidade e de
convivência entre pais e filhos por causa das questões da vida moderna. E
quando estão juntos, os pais não conhecem essas crianças, não sabem lidar com
elas. Estão estressados com os seus trabalhos, estão viciados nos seus
telefones e não querem também se submeter à desaprovação social de uma criança
que chora ou se comporta mal. Acaba que essa criança não tem direito de se
manifestar de forma negativa, que faz parte do comportamento infantil. Ela não
pode fazer uma birra, dizer “não”, chorar, explorar seus limites de atuação no
mundo. Como os pais não sabem lidar com essas situações, a criança acaba tendo
todos os seus desejos realizados, não lhe colocam limites, não lhe dizem que
ela tem que lidar com a frustração. A gente quer calar a qualquer custo o mal
estar. Então para parar com o chilique, a gente acaba cedendo. Ao invés de
aprender as regras de convivência, a criança passa a ser uma rainha que dita as
normas, os programas, os horários.
2.E o pecado que você chama de “superproteção da infância”?
A superproteção é impedir que as crianças tenham suas
próprias experiências. A gente está presente o tempo todo, aquilo que os
americanos chamam de “helicopter parent”, pais que ficam flutuando em torno das
crianças fazendo com que elas não tenham a experiência do mundo, justamente
porque os pais se interpõem entre o mundo e a criança. Elas ficam impedidas de
lidar com o risco, com a aventura, com as relações interpessoais, com os
problemas da escola, com a dor, com os machucados. Se a criança tem um problema
com uma outra criança, os pais se interpõem para resolver a questão, no
playground não deixam ela se arriscar a subir mais alto no trepa-trepa. É claro
que ninguém quer que o filho quebre um dedo ou receba um ponto, mas são
experiências da infância. A criança tem que ter a experiência do risco, do
machucadinho e da frustração. Outra coisa muito grave é que para evitar os
perigos do mundo, as famílias ficam muito em casa, se expõem pouco à natureza,
as praças e as praias. Os riscos desses lugares existem e temos que lidar com
eles, pois fazem parte da vida.
3.Qual o prejuízo real para crianças que não sabem ouvir a
palavra “não”? O que vai ser (ou já está sendo) dessa geração sem limites?
Eu já vi criança dormindo às duas da manhã, já vi criança
de dois anos que comanda o que tem na geladeira e no armário da despensa.
Outras que determinam o programa da família nos fins de semana, se elas não
querem sair, ninguém sai. Pais que deixam a criança de 3 anos ficar horas na
televisão porque não sabem desligar o aparelho e deixar ela ficar frustrada.
Criança que come o biscoito ao invés da comida, que ganha o presente depois de
ter se jogado no chão do shopping. Isso tudo causa um prejuízo enorme, tanto na
qualidade de vida dessa família, quanto na psiquê, na emocionalidade dessa
criança. Ela precisa saber que a sua vida tem limites, que a sua influencia tem
limites, que o mundo não gira em função do seu umbigo. Muitos meninos e meninas
dessa geração vão levar isso para a vida adulta e não só terão dificuldades de
convívio como vão quebrar a cara nos seus ambientes de trabalho e em
relacionamentos interpessoais. Porque nem sempre a vida vai acolher esse tipo
de onipotência que é resultado de uma educação cheia de falhas nesse sentido.
4.A culpa que os pais carregam é a grande vilã nessa
história?
Eu tenho muito medo da gente restringir a questão à
responsabilidade da família. A família é responsável sim, tem que saber lidar
com a frustração, o choro, as emoções negativas da criança, tem que saber
mostrar a ela que esses momentos passam, que estas situações vão deixar ensinamentos
importantes. Os pais sentem culpa porque não estão presentes na vida dela e
quando estão juntos querem dar coisas demais. A gente briga com essa história
de dar presente, ao invés de dar presença. Muitas vezes o tal “deficit de
atenção” é deficit de atenção de pai e mãe que a criança sofre. Mas a gente tem
que justamente tomar muito cuidado para não piorar isso dizendo que os pais são
os culpados porque o que leva a tudo isso é a vida moderna, é a perda de
referências, é a falta de capacidade de aprender com as gerações anteriores,
com a experiência dos outros, é a invasão do tempo de trabalho e do tempo de
entretenimento no tempo em família, é o vício do smartphones. Tudo isso tem que
ser pesado na compreensão desse fenômeno da entronização e da superproteção da
infância, a gente não pode restringir a responsabilidade e nem as soluções
apenas a nível familiar.
5.A justificativa sincera de muitos pais é de que eles
fazem o melhor que podem, trabalham o dia todo, batalham para dar conforto aos
filhos, chegam exaustos em casa. É até mesmo controverso: as pessoas querem ter
filhos mas não conseguem ter tempo de conviver com eles. Como resolver este
impasse?
As pessoas querem ter filhos e imaginam que tudo vai ser um
mar de rosas. Elas têm que ter consciência de que vão ter filhos neste mundo em
que vivem: nas grandes cidades, muitas vezes com a falta de presença de
familiares, com trabalhos que demandam excessivamente, com transporte que fazem
elas chegarem tarde em casa, isso tudo tem que ser incorporado por um casal
quando eles planejam filhos. Planejar ter filho é ver o futuro. Claro que a
maioria das pessoas não faz isso, a gente quer ter filho, a gente quer
reproduzir a nossa própria genética, isso faz parte de um mandato biológico.
Mas hoje em dia a gente tem que pensar nas condições de vida que essa criança
vai nascer e como nós vamos dedicar o nosso tempo a ela. Isso faz parte da
responsabilidade de um casal. É preciso planejar a carreira, o local de
trabalho para que a convivência familiar seja maximizada, para que a criança
cresça com a presença dos pais, dos avós, tios, primos. Escolher um lugar para
morar com natureza por perto. De novo a gente não pode reduzir a solução deste
impasse a nível da família, a gente tem que tentar pensar na sociedade como um
todo. A sociedade brasileira é insegura, desigual e cheia de problemas e isso
influencia nas condições de vida das famílias.
6.O video americano “Childhood is not a mental disorder” já
deu o que falar sobre o uso exagerado de remédios em crianças para controlar
“doenças do comportamento”? Você concorda que é preciso ter muito cuidado com
os diagnósticos?
Eu gosto muito desse vídeo e ele traz mesmo uma dimensão
terrível do que a sociedade está fazendo com a infância. O mercado pressiona a
família por soluções fáceis, todo mundo quer resolver os problemas
imediatamente. A energia da criança está sendo reprimida. É claro que o
comportamento dela vai ser muito afetado por todas as questões que eu já citei,
podendo se rebelar, ter insônia, desatenção, brigar na escola, ser impulsiva.
Em vez da gente repensar como oferecer a estas crianças uma infância melhor,
mais saudável, mais verdadeira, o que o mercado propõe é que elas sejam
medicalizadas. A indústria de diagnósticos e de remédios é monstruosa e
crescente. No Brasil, a Ritalina é o principal remédio usado para criança. Em
10 anos a venda de Ritalina subiu de 75 mil caixas para 2 milhões de caixas. O
Ministério da Saúde agora está estabelecendo uma regulação para a venda do
remédio. A gente não pode negar que essas doenças existem, o TDAH (Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade) é uma doença grave, mas ela atinge um
pequeno número de crianças. A grande maioria desses diagnósticos está sendo
feita de forma arbitrária, sem critério suficiente, eu diria até perversa. É
preciso mudar o comportamento da família ou ir para psicoterapia, terapia
ocupacional, fisioterapia, fonoaudiologia, que são benéficas para este tipo de
problemas e poderiam ser tentadas antes e de forma mais eficaz. Porque o
remédio vai ter efeitos colaterais, vai rotular esta criança, como o video
expõe muito bem, vai colocar na cabecinha dela que ela é apenas um transtorno e
não uma criança que tem potencialidades múltiplas e possibilidades infinitas
para o seu futuro. Tem a historia de uma mãe que levou a filha ao pediatra
porque achava que ela tinha problemas e o pediatra deixou a criança com uma
música e saiu da sala por alguns minutos com a mãe. Eles ficaram observando a
criança do lado de fora, enquanto ela dançava o tempo todo. E o pediatra disse:
“Sua filha não tem um problema, sua filha é uma bailarina, leve-a para uma aula
de ballet e vão ser felizes”. Gillian Barbara Pyrke, a menina da historia, se
tornou uma famosa coreógrafa da Broadway. Quantos gênios, artistas, cientistas
nós não estamos perdendo medicando e rotulando essas crianças?
7.Quais as suas dicas para criarmos “crianças como
crianças”?
Acolher as crianças nas suas emoções. Especialmente as
crianças pequenas têm uma racionalidade limitada e uma emocionalidade muito
grande. Se ela está com raiva, você pode dizer pra ela “você está com muita
raiva”. E mostrar de forma teatral o que está acontecendo com ela, fazê-la
entender o sentimento que ela está tendo e dar permissão para ela sentir essas
emoções, tanto negativas quanto positivas. Acolher também os desejos: “você
quer esse brinquedo, eu sei que você quer muito ele, eu te entendo, mas a mamãe
não pode comprar ele agora”. Isso quebra um pouco esse mecanismo da birra. Ter
convivência com os nossos filhos, oferecer a eles oportunidades de conversa, de
refeições em família, de sair na rua juntos, brincar nos parques, subir no
trepa-trepa, ralar o joelho no chão, cair do skate (com capacete!), subir numa
árvore, levar um zero, aprender com a frustração. Tudo isso é importante para
formar uma criança mais feliz e um adulto mais íntegro, preparado para conviver
com o outro. Pra saber respeitar o outro a primeira coisa que a criança tem que
entender é que ela não é o centro do mundo. Ela é um membro da família e ter
relações igualitárias com os outros membros da família vai fazê-la entender que
ela vive numa sociedade. Esse é o nosso papel como pais.
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